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Se Fânzeres não gozava de qualquer relevância no circuito das publicações de arquitectura, acabou de encontrar a oportunidade para o mudar. No ano em que o Metro (do Porto) chegou a esta freguesia de Gondomar, chegou também “às bancas” o primeiro número da fanzine Friendly Fire.

O anúncio da proveniência da tiragem partilha honras de capa com a caveira de Le Corbusier sobre dois fósforos cruzados, ilustrando a intenção de piratear a arquitectura. Sob este desenho, um não menos claro título: “das ist friendly fire” (isto é fogo amigável). De seguida, desfilam nomes de arquitectos com a única pretensão de informar que esses não participam neste número (aproveitando “inocentemente” para discriminar os que participam). Este arrolar de um sem-fim de companheiros revela o universo em que foi criada esta fanzine: um ambiente sem outras pretensões que as de conviver e debater ideias entre amigos. Se somarmos ainda o formato A5 com pouco mais de 40 páginas, a impressão caseira a preto e branco e a orgulhosa publicidade à formatação feita em AutoCad (derradeira prova de dedicação “à causa”), temos como resultado algo que faz jus ao amadorismo e entusiasmo típico deste tipo de publicações.

Mas o que é o “fogo amigável”? A pergunta é tão legítima que os autores abrem a publicação explicando-o. O termo tem origem entre as forças armadas norte-americanas para descrever a situação em que vitimam acidental e impunemente elementos das suas próprias forças. É um eufemismo, possivelmente herdeiro do método “disparar primeiro, perguntar depois” de que são comummente acusados de praticar. E qual a sua utilidade em arquitectura? Os autores esclarecem que esta atitude não deve ser confundida com “Crítica” e que se inspira na literalidade e descomprometimento dos piratas. Mas querem propor algo com cada disparo, entre uma perspectiva alternativa e um ataque mais feroz. Afiançam, ainda assim, que são razoáveis; pretenderão afinal fazer um exercício militar amistoso?

O editorial explica a génese da fanzine e passa uma ligeira revista aos artigos deste número. Indissociável do aparecimento da Friendly Fire é o Torneio Escada 2010 – um encontro de(stes) arquitectos em Picote/Barrocal do Douro, aldeia mirandesa (Trás-os-Montes) que esconde o “Moderno Escondido”. Os verdadeiros contornos do Torneio Escada 2010: a grande prova da arquitectura portuguesa permanecem no segredo dos que o disputaram. Parece ser unânime o “juramento” feito para que não se fale dos acontecimentos ocorridos entre 18 e 19 de Setembro de 2010. Sabe-se, contudo, que a convocatória foi feita através do envio postal de um cartaz explicativo onde já figuravam os nomes dos arquitectos que estariam a ser contactados – tratava-se de um aviso, mais do que de um convite. Tal qual um torneio desportivo, o grupo inicial de 32 nomes (individuais ou representando colectivos) terá combatido entre si pelo acesso à eliminatória seguinte até à final. A clandestina organização insistia, na brochura, que o torneio iria ser um combate violento e o prémio um depósito de gasolina e uma caixa de fósforos.

A memória deste torneio de arquitectura é fixada em três artigos: “Stair System”, que aproxima os intervenientes de alter egos da cultura popular (actores, arquitectos, artistas plásticos, desportistas, músicos…); “O argumento do Torneio de Picote”, onde se revela um pouco os acontecimentos, narrado e formatado como um argumento para um filme; e “Textículo”, uma reflexão sobre o que foi e o que poderia ter sido o torneio. Estes artigos serão porventura os mais incompreensíveis por parte do público em geral – que será todo aquele que não esteve presente no torneio ou que não tem proximidade com os arquitectos citados. Ainda que os trocadilhos com os nomes e a comparação fotográfica entre os intervenientes e os seus alter egos sejam de fácil percepção e inegável humor, os textos encerram uma grande dose de private jokes.

Em “Tu me piques/Je te nique” relata-se a ascensão e a queda dos piqueniques urbanos na cidade do Porto, uma “acção deslocada” e que “recusa a normativa”, contada na primeira pessoa, entre a descrição pormenorizada e devaneios nostálgicos. “Na quinta Praça do Cavalo” faz-se um exercício deliciosamente científico – estruturado, referenciado e ilustrado com pormenor –, enquadrando um projecto do arquitecto José Gigante no contexto da estatuária portuense e internacional, no contexto do Porto 2001 – Capital Europeia da Cultura. O texto é enriquecido pela leitura crítica destas circunstâncias, relacionando-as imaginativamente entre si e com letras de canções e expressões populares. É difícil conter o riso ao longo da leitura que termina num “pedido de colaboração/homenagem” a José Gigante, sob forma de poesia. Zé Gigas, poeta popular, respondeu na mesma moeda com “Cavalos à beira de um ataque de nervos”, uma original e hábil memória descritiva do projecto. Um outro artigo – “Que Beaubourg para Baudrillard?” – reflecte sobre o antagonismo entre Jean Baudrillard e o edifício do Centro Georges Pompidou. Ultrapassando a implosão como resolução para a contenda, o texto menciona outras propostas a concurso (1971), detendo-se finalmente na que mais agradaria a Baudrillard, com uma fundamentada aproximação entre os dois. Depois, “Batalha na Vala” dá a conhecer dois jogos da autoria do designer carioca Fabio Lopez: uma adaptação pouco dissonante do original “Batalha Naval” e uma versão do jogo de tabuleiro “Risco” chamado “War in Rio”, considerada pelo autor como um “jogo manifesto e uma piada de mau gosto”; uma divertida análise da cidade do Rio de Janeiro, acrescentaríamos.

As páginas finais são consagradas a localizar no mapa a “Loja que faz um bico” (no Bairro da Bouça, Porto), sítio do lançamento da revista, e ao reencaminhamento de qualquer contacto para o correio electrónico, justificando que a soleira não permite passar cartas. Por este motivo terminam com um sarcástico agradecimento ao arquitecto Álvaro Siza. Como anexo, qual fanzine de música, um poster (A4) evoca em tom de desafio a intervenção de Eduardo Souto de Moura e Ângelo de Sousa na Bienal de Veneza de 2008.

A limitada tiragem de 100 exemplares revelou-se modesta. A surpresa chegou com novos pedidos que ameaçam alargar o círculo de amigos do projecto. Surpreendidos também foram os autores com a inclusão da Friendly Fire num website, catálogo e exposição internacional itinerante (http://archizines.com) que a tem levado e continuará a levar por importantes locais de exposição de arquitectura. O grupo editorial ambiciona preparar um segundo ataque, não adoptando o método norte-americano supracitado, esperemos, antes no que consideramos um sincrónico disparar e perguntar. Confiemos que este grupo, adepto do “FUN – Futebol, Urtigas e Nestum […] numa cena mais México 86 do que Maio de 68, mais Family Guy do que Guy Debord, mais mascote Gil da Expo do que Gilles Deleuze”, continue a elevar o tipo de letra predefinido do AutoCad a honras editoriais, piscando o olho tanto a quem interpreta Fânzeres como uma metáfora da discussão sobre a suburbanidade, como a quem lhe “basta” a aliteração que o nome produz.|


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